Falabella faz texto emocionante sobre Marília Pêra: “No seu último dia de gravação percebi que aquilo era uma despedida”

O ator e diretor Miguel Falabella se despediu da Marília Pêra em sua página pessoal do Facebook. Marília, que morreu na manhã de sábado (5), aos 72 anos, vítima de câncer no pulmão, era amiga, confidente e uma “mestra” de Falabella. Os dois contracenaram juntos várias vezes na TV e no teatro.

No post, Falabella diz que a conheceu quando tinha 22 anos. “Marília nos ensinava a amar o teatro”.  Também diz que ela foi mais que uma colega de trabalho, mas uma mestra com quem ele teve o privilégio de ter aulas particulares. E revela como foi o último encontro com a colega de Pé na Cova: “No seu último dia de gravação percebi no olhar dela que aquilo era uma despedida”. Falabella foi direto ao comentar sobre o programa humorístico da TV Globo: “Pé na cova não existe sem a Marília. No final, por causa da doença, ela já estava gravando sentada. Aprendi a representar com ela. É um dia muito triste. Mesmo com dor, ela tinha aquela chama da vontade. Eu ia para as cenas com ela para aprender. Ela é uma atriz espetacular e está no top cinco das melhores do Brasil. Vai ser difícil trabalhar sem ela”, disse ele”.

Reprodução / Facebook

Reprodução Facebook.

 

Confira o texto na íntegra:

Na sexta-feira não me senti bem. Um mal estar por todo o corpo. Fiquei na cama recuperando forças para o espetáculo noturno, assistindo a um documentário sobre Van Gogh. E pensei nela. Curiosamente, enquanto o narrador explicava que as escolhas do pintor o direcionavam para uma singularidade excepcional, eu pensava em Marília Pêra. E fazia uma analogia entre as pinceladas nervosas e o ritmo inebriante do mestre holandês com a agilidade com que Marília buscava as emoções, cuidadosamente armazenadas e devidamente estudadas.

Assim como Van Gogh escolhia as cores, Marília ia escolhendo emoções e colorindo com elas o texto. Enfim, fui para o teatro e não me senti bem no fim do primeiro ato. Cogitou-se até se Cláudio Galvan não deveria fazer o segundo ato em meu lugar, que é o que se faz numa emergência, mas é estranho. Terminei a peça, fui pra casa, tomei um remédio e me embrulhei nas cobertas. Acordei suado, dolorido, com o telefone tocando. Marília se foi, Cininha me disse chorando./ O mundo para. O quarto está escuro, porque nunca consegui dormir com luz. E penso que preciso vê-la. Preciso me despedir dela./ No avião, vim costurando os pedaços da manta, tentando contar a história.

Eu tinha vinte e dois anos quando conheci Marília Pêra. Era egresso d’O Tablado e ela nos dirigiu numa montagem de A Menina e o Vento da Saudosa Maria Clara Machado, no teatro Clara Nunes. Era uma diretora caprichosa, cheia de vontades, e ali já havia a tal singularidade excepcional. Mais do que conceituar ou nos explicar as intenções da personagem, Marília nos ensinava a amar o teatro. A sagração do ofício para ela sempre foi muito importante. Era dona absoluta do texto, estudava sem parar o texto. Nunca entrei em seu camarim, sem que ela estivesse passando uma ou outra fala. E ensaiávamos nossas cenas com cuidado, aprendendo a respiração um do outro, percebendo o tamanho exato da pausa para que o ritmo não se perdesse e a emoção se mantivesse à tona.

Nesse sentido, Marília foi muito mais do que uma colega de trabalho. Foi uma mestra com quem tive o privilégio de ter aulas particulares. Lembro-me de um dia em que troquei uma fala e ela me corrigiu: como você escreveu fica melhor! Ela costumava dizer que nós não éramos amigos, que o trabalho é que nos juntava. Talvez ela tivesse razão. Nunca me falou sobre a doença e eu entendia o porquê. Não queria que eu a visse como alguém que já não pudesse mais exercer seu ofício. Eu imediatamente comecei a escrever um projeto para ela estrelar depois de Pé na Cova. Percebi que o trabalho talvez a mantivesse viva. Não foi o bastante. No seu último dia de gravação, quando ela se despediu de sua memorável Darlene, e foi sendo levada para o camarim em cadeiras de rodas, ovacionada pela técnica e pelo elenco, eu me deixei ficar atrás do cenário, porque percebi no olhar dela, que se estendia até os refletores lá no alto, que aquilo era uma despedida. Talvez não fôssemos amigos, mas havia algo muito maior que nos unia: o respeito pelo ofício. Que eu aprendi com ela e com outros mestres que me cruzaram o caminho.

Essa foto foi tirada numa de suas últimas gravações. Acabamos de gravar uma cena e ela ficou satisfeita, depois ficamos falando sobre os ataques que ela estava sofrendo por ter abandonado a peça que ela estava ensaiando. Já não importava mais, Marília sofreu vários ataques ao longo de sua carreira. Não somos um povo generoso com o sucesso. A classe a rejeitou no episódio Collor e só seu extraordinário talento fê-la sobreviver ao massacre. Enfim, voltando à foto: Eu peguei o celular e disse: deixa eu tirar uma foto sua! Ela respondeu: Pode tirar. Eu já fiz as pazes com isso tudo.

Já tinha publicado a foto, mas não tinha contado a história. Talvez não fôssemos amigos, como ela gostava de dizer, fazendo charme e fingindo ciúme de outras atrizes, mas em sua última mensagem no WhatsApp, ela diz que me ama do fundo do coração. E eu então? De que maneira mensurar tantas emoções? Você foi o norte de uma geração de atores, Marília! Todos nós seguimos viagem com sua bússola nas mãos, buscando seu fraseado e seu gesto preciso. Eu também te amo. Do fundo do coração. E quer saber? Eu acho que também já fiz as pazes com isso tudo.